Ao lançar autobiografia, 'Os filmes e eu', diretor reflete sobre a sua geração e o cinema novo e, noveleiro, diz não perder nenhuma cena do filho, Marcos Palmeira, em ‘Pantanal'.
No prólogo de sua recém-lançada autobiografia, “Os filmes e eu” (Record), Zelito Viana dá detalhes sobre um dos assaltos que sofreu em sua antiga casa, no Cosme Velho, no Rio, em 2014, o que fez com que o diretor e sua mulher, Vera Viana, se mudassem para Copacabana. Na ocasião, além do temor de ficar sob as ameaças de cinco homens armados e de alguns itens roubados, Zelito perdeu o computador com 180 páginas dos originais do livro, no qual vinha trabalhando. Com a pausa nas atividades forçadas pela pandemia, o cineasta de 84 anos se viu novamente diante da própria história e retomou o projeto.
Ao recuperar sua trajetória, Zelito percebeu não estar contando apenas passagens pessoais, mas parte fundamental da história do audiovisual brasileiro, do cinema novo à retomada. Ex-engenheiro metalúrgico, ele fundou em 1965 a Mapa Filmes, em sociedade com Glauber Rocha, Paulo Cesar Saraceni, Walter Lima Júnior e Raymundo Wanderley, produtora responsável por, entre outros filmes icônicos, “Terra em transe” (Glauber), “Cabra marcado para morrer” (Eduardo Coutinho) e “A grande cidade” (Cacá Diegues).
Ao passar da produção para a cadeira de diretor, em 1969, Zelito jogou luz sobre as questões indígenas, com “Terra dos índios” (1979) e “Avaeté” (1985), e revisitou biografias de personalidades como Villa-Lobos (2000) e Juscelino Kubitschek (2009). Histórias que começaram a ser reescritas como autobiografia quando o diretor passou a ver o próprio rosto na tela do computador, nas inúmeras reuniões remotas durante a pandemia.
— Quando perdi metade do livro no assalto, me deu uma raiva danada, não quis mais escrever. Mas ao me ver todo dia naquela telinha, nas reuniões, pensava: qual a história deste cara? — diverte-se Zelito. — Ao voltar a essas memórias, me dei conta de como a nossa geração era privilegiada, quantos personagens tão ricos e variados eu vou citando. Estávamos todos unidos em torno de um mesmo ideia, de acabar com a ditadura e a censura, de poder respirar.
Ao comparar os sonhos de seus contemporâneos com o momento atual, o cineasta lamenta a volta do discurso da intolerância e a condução de áreas como as de políticas sociais, ambientais, a questão indígena e a visão internacional sobre o país.
— Pela primeira vez em meus 84 anos, sinto vergonha em ser brasileiro. Claro que, na ditadura, eu não teria a liberdade de falar isso, mas nós tínhamos a esperança de que um dia aquilo iria acabar, lutávamos por isso. Hoje estamos diante de um projeto que foi eleito pelo voto. Não foi o Bolsonaro que inventou o Brasil, foi o contrário — ressalta Zelito. — A ditadura era institucionalmente ruim, mas do ponto de vista existencial estamos piores hoje.
Nos anos em que a repressão sufocou a produção cinematográfica por meio da censura ou de asfixia econômica, Zelito foi para a TV, onde trabalhou com o irmão Chico Anysio (1931-2012) e, anos mais tarde, ajudou a fundar o Canal Brasil. Hoje, noveleiro confesso, não perde um capítulo de “Pantanal”, na qual seu filho, Marcos Palmeira, vive o fazendeiro Zé Leôncio, pai do peão Tadeu, seu personagem há três décadas na versão original do folhetim.
No livro, o cineasta conta que a primeira vez que Marquinhos, como o chama, entrou num set foi em um curta institucional produzido pela Mapa, “Copacabana me aterra” (1969), aos 5 anos.
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Após tanto tempo de parcerias profissionais, pai e filho preparam duas novas colaborações. Uma, recém-finalizada, chama-se “Da terra dos índios aos índios sem terra”, em que o ator faz a narração de um manuscrito de uma entrevista dada por Darcy Ribeiro, que originou o longa “Terra dos índios”, e será lançada em outubro, no centenário do antropólogo. A outra, “Sedução”, começará a ser rodada em Alter do Chão (PA) no primeiro semestre de 2023, com Palmeira dividindo a direção e voltando a contracenar com Dira Paes depois de “Pantanal”.
— A gente conversa direto sobre tudo, sobre a novela, os projetos que estamos fazendo. O set com ele é muito divertido, mas sempre com muito respeito pelo que cada um sabe executar na sua área. E a gente se inspira nesse vigor dele, a forma com que vibra com um novo filme — conta Marcos Palmeira. — Nunca houve um estímulo direto para que nós seguíssemos a carreira artística. Eu pensei em ser indigenista, a Betse (de Paula, produtora e cineasta) fez sociologia. Mas não deu para fugir, o cinema estava dentro da nossa casa. E ele e minha mãe nos deram bases muitos sólidas para seguir carreiras em um meio tão instável.
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Zelito compara a tentativa dos filhos de “escapar” da carreira artística com a própria experiência: após morar na França e na Alemanha como engenheiro metalúrgico, voltou ao Brasil em 1963 para abraçar o cinema definitivamente. Sete anos mais novo que Chico Anysio, o cineasta recorda que, na adolescência, via o irmão, na época trabalhando no rádio, receber em casa nomes como os jornalistas Sérgio Porto e Antônio Maria e o compositor Tom Jobim, influência familiar que se tornou parceria profissional anos mais tarde. Entre as passagens da autobiografia em que menciona o irmão, Zelito destaca uma memória vivida com o irmão no marco zero da ditadura. Incumbido pelo dramaturgo Oduvaldo Vianna Filho, o Vianinha, de convencer Chico a fazer o show de inauguração do Teatro da UNE, Zelito foi à sede da União Nacional dos Estudantes na tarde de 31 março de 1964 para avisar que o humorista havia aceitado, mas não conseguiu interromper a tensa reunião que acontecia no local. No dia seguinte, com a tomada do poder pelos militares, a sede da UNE foi incendiada e o show de inauguração feito por Chico Anysio não saiu do papel.
— O Chico herdou do meu pai não só o nome, mas a capacidade de fazer rir. Meu irmão conseguia imitar perfeitamente qualquer um que fosse lá em casa. Depois ele levou isso ao extremo, em mais de 300 personagens totalmente diferentes. Ele se transfigurava. Uma vez ele me deu um esporro, quando estávamos correndo para gravar, e eu mandei uma bengala que não era a do Popó. E ele reclamava sem sair do personagem — ri Zelito. — Fico pensando em como ele veria certas coisas hoje, com a perspicácia que tinha.
O cineasta acredita que o próximo filme, “Sedução”, será o mais pessoal, por seu roteiro ser parcialmente inspirado em conhecer, já adulto, outros oito irmãos de uma outra família que seu pai mantinha em São Luís (MA), história que também relata no livro.
— Um dia eu era o caçula e no outro era o mais velho de uma família que descobri. É uma experiência que marca para a vida toda. A partir dessa história pessoal, a trama também vai abordar a luta em defesa da Amazônia — adianta.
Os temas sociais e as grandes biografias perpassam as décadas de produção do diretor, em filmes ficcionais ou documentais. Revendo a própria obra, Zelito vê o que o motiva a ligar uma câmara....
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