Os números amazônicos costumam ser imensos. A Amazônia Legal abrange
61% do território do Brasil e contém 40% do rebanho nacional. O gado é
mantido em cerca de 400.000 fazendas espalhadas pela região, com
tamanhos que variam de alguns poucos até dezenas de milhares de
hectares. Então, quando a ONG Imazon terminou um novo e detalhado
levantamento sobre os frigoríficos da região, a grande surpresa foi
encontrar um número pequeno: apenas 128 instalações de frigoríficos
ativos, pertencentes a 99 empresas, são responsáveis por 93% do abate
anual, algo como 12 milhões de cabeças de gado.
Já era sabido que os frigoríficos são o gargalo da cadeia de criação
do gado. Mas o levantamento do Imazon é inédito porque revelou a
geografia da pecuária na Amazônia, vista pela zona de influência destes
pouco mais de cem abatedouros. Para se ter uma ideia, ocupar a
capacidade de abate anual de um único frigorífico de grande porte
demanda uma área de pasto de quase 600.000 hectares, três vezes maior do
que o município de São Paulo. O conjunto de frigoríficos analisados no
estudo, operando a plena capacidade, demandaria uma área de pasto de 68
milhões de hectares (maior do que o estado de Minas Gerais). Essa
quantidade supera a soma dos pastos hoje existentes na região, indicando
que o futuro da atividade gerará mais desmatamento.
Esses resultados reforçam o acerto de um processo em curso. Desde
2009, com início no Pará, o Ministério Público Federal pressiona os
frigoríficos da região a assinar o chamado TAC da Carne. TAC é
abreviação de Termo de Ajuste de Conduta, uma espécie de contrato entre o
MPF e cada frigorífico que o assina, o qual passa a ser obrigado a
fiscalizar a origem do gado que compra para barrar o “boi de
desmatamento”.
Paulo Barreto, pesquisador do Imazon que liderou o estudo, compara:
“é como se para conversar sobre o problema, houvesse duas opções, reunir
num auditório os representantes destas cem empresas frigoríficas ou,
como alternativa, alugar cinco estádios como o Maracanã para colocar
todos os fazendeiros envolvidos na criação do gado”.
Bois no curral de um frigorífico. Imagem: Fabio Nascimento.
Risco de desmatamento
A análise que detalhou a influência de tão poucos frigoríficos sobre
quase todo o rebanho amazônico envolveu trabalho de detetive e
tecnologia de geoprocessamento. A primeira etapa foi obter os endereços
de todos os frigoríficos de maior porte e confirmá-los usando imagens de
satélite de alta definição, para verificar se naqueles locais havia
instalações típicas da atividade, como currais e tanques de tratamento
de água.
A partir daí, os pesquisadores queriam responder a pergunta: qual era
a zona potencial de compra de cada frigorífico? E dois, como essa zona
potencial se relaciona com as áreas já desmatadas e as que estão sob
maior risco de desmatamento no futuro próximo?
O primeiro passo era descobrir a distância máxima que cada
frigorífico alcançava nas compras de gado. Isso foi feito através de
entrevistas telefônicas com os gerentes de frigoríficos e cruzamentos de
dados. Havia casos curiosos, como um frigorífico no Acre, que não
adquiria boi mais longe do que a 20 km das suas portas, e, no extremo
oposto, no Amazonas, havia outro que comprava a mais de 1.000 km de
distância, indo até Roraima, para compensar a falta de gado na sua
região na época da seca.
O estudo lidou com duas categorias de frigoríficos, aqueles que têm
licença SIE (Sistema de Inspeção Estadual), que podem vender carne nos
seus estados, e SIF (Sistema de Inspeção Federal), que podem vender no
país todo e exportar. Em média, frigoríficos com licenças estaduais têm
capacidade para abater 180 animais por dia e compram de fazendas que
podem estar a até 153 km de distância. Os frigoríficos com licença
nacional abatem 700 animais por dia e vão buscá-los a uma distância que
chega a 360 km.
Baseado nas distâncias máximas, o segundo passo era estabelecer a
área potencial de compra dos frigoríficos. Hora de voltar à tecnologia
geoespacial. “O Imazon tem um mapeamento completo de estradas oficiais e
informais na Amazônia, uma base que vem sendo atualizada desde 2008”,
conta Amintas Brandão Jr., outro dos autores do estudo. “Rodamos uma
análise espacial em que você insere no software as coordenadas do
frigorífico e a distância máxima que ele compra, digamos, 100 km. Daí, o
software sozinho percorre todas as estradas e rios navegáveis
acessíveis àquele frigorífico até atingir os tais 100 km. Assim,
conseguimos delinear uma zona potencial de compra”. Segundo Brandão, o
diferencial do trabalho foi este, estabelecer a área de influência de
cada frigorífico usando a rede de infraestrutura, a malha de estradas e
rios navegáveis por onde o gado pode ser transportado.
O somatório das regiões de influência dos 128 frigoríficos analisados
abrange a quase totalidade das áreas embargadas pelo Ibama e 88% do
desmatamento ocorrido na Amazônia entre 2010 e 2015.
Desmatamento futuro
O estudo gerou uma previsão de onde estarão as próximas áreas
desmatadas na Amazônia. De novo, os pesquisadores recorreram aos
softwares de análise geoespacial. Eles dividiram a Amazônia Legal em
quadrados com 1 km de lado. Para cada um deles, foi estimada a
probabilidade de desmatamento baseada na presença de fatores que o
estimulam, como disponibilidade de transporte por estrada ou rio,
distância até mercados e potencial da terra. Criaram, assim, um mapa de
probabilidade de desmatamento para toda a Amazônia Legal. Usaram a área
desmatada nos três anos anteriores, 1,7 milhão de hectares (17 mil km2),
como estimativa do total de desmatamento que poderá ocorrer no triênio
2016 a 2018. Em seguida, a partir do mapa de probabilidades,
determinaram quais são as áreas com maior chance de ocorrência de novos
desmatamentos. A última etapa foi sobrepor as zonas de influência de
compras dos frigoríficos. A coincidência entre as duas áreas foi de 90%.
Em outras palavras, se entre 2016 e 2018 a taxa de desmatamento
recente se repetir, 90% das novas perdas de floresta estarão dentro da
área de influência de compra de 128 frigoríficos.
Consequências
“Da perspectiva da fiscalização, o trabalho pode ajudar no controle
do desmatamento mostrando onde estão os ‘hot spots’, os pontos onde há
mais floresta e/ou chance de desmatamento”, diz Brandão.
Para Barreto, “chama atenção como um número pequeno de empresas está
no fim da cadeia que envolve quase 400.000 pecuaristas”. Segundo ele,
isso confirma que está certo o caminho de envolver os frigoríficos na
fiscalização do desmatamento, como obrigam os acordos com o MPF. Mas
destaca que 30% do abate é feito por frigoríficos que não assinaram
acordos. Isso significa que não fiscalizam a origem dos seus bois. Pior,
esses frigoríficos estão na mesma área de atuação daqueles que
assinaram os acordos e, assim, se tornam alternativas para a venda de
gado criado em pastos abertos ilegalmente.
O estudo do Imazon criou um panorama detalhado da influência que os
frigoríficos podem ter sobre o desmatamento. “Já temos um mapa, as
tecnologias estão disponíveis para rastrear o gado da sua origem até o
local de abate”, diz Barreto. “Falta agora uma pressão consistente e
punições para criadores e frigoríficos que compactuam com crimes
ambientais”. Ele diz que isso aconteceu no caso da febre aftosa, quando o
setor percebeu que perderia os mercados mundiais se não fosse feito um
programa efetivo de vacinação. A pressão do mercado funcionou para os
fazendeiros se organizarem e firmarem parcerias com o governo. Para
Barreto, um bom começo seria uma nova rodada de aperto sobre o setor
liderada pelo MPF e pelo Ibama.
O Brasil alcançou um bom controle de febre aftosa, um feito e tanto.
Se quiser, pode fazer o mesmo para acabar com a pecuária que derruba
floresta. Será um enorme passo rumo ao desmatamento zero na Amazônia.
Fonte: El País
Imagem de destaque: Imagem de satélite do Frigorífico JBS, em Santana do Araguaia, Pará. Google Earth
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