Por que as desigualdades econômicas crescentes ameaçam a sociedade e a democracia

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No capitalismo globalizado e desregulado dos dias atuais, a desigualdade de renda e riqueza está crescendo por várias causas. A principal delas refere-se a uma remuneração do capital superior às taxas de crescimento do conjunto da economia. 


NOEL CELIS / AFP

Os dados recentes divulgados pela Oxfam dizem respeito à crescente desigualdade de riqueza (patrimônio líquido) entre pessoas, considerando apenas a riqueza monetária ou material mensurável em termos monetários. A desigualdade de riqueza, que consiste em estoques de bens e valores, é decorrência de uma contínua desigualdade na apropriação das rendas geradas na economia, que são fluxos de bens e valores, anualmente mensurados pelo valor do PIB. Por isso, desigualdades interpessoais de riqueza e renda estão estreitamente relacionadas. A Oxfam também indica isso, ao apontar que, do aumento da renda mundial ocorrido desde 2000, a metade mais pobre da população mundial obteve 1%, enquanto o 1% mais rico obteve 50%.

Esses dados corroboram os resultados das pesquisas do economista francês Thomas Piketty e vão ao encontro de constatações análogas do FMI, da OCDE e do Papa acerca da crescente desigualdade de renda e riqueza na economia mundial, fenômeno que vem se verificando desde os anos 1980. É provavelmente correta a proposição de que o atual nível de desigualdade de riqueza seja o maior em um século. Na origem desse fenômeno estão certas tendências inerentes ao capitalismo, inclusive os efeitos da crise financeira iniciada em 2007. Para além dessas tendências, a desigualdade crescente também se explica pelas mudanças institucionais promovidas por meios políticos.

É interessante notar que os dados referem-se à desigualdade de riqueza e renda e não às condições de pobreza (considerada como privação de renda e riqueza), pois a proporção de pobres no mundo vem se reduzindo. Ocorre que a redução da proporção de pobres resulta principalmente do crescimento econômico da China e da Índia, que adotaram nas últimas décadas políticas de desenvolvimento conduzidas pelo Estado e apoiadas crescentemente nos mecanismos de mercado. Nesses dois países, a desigualdade de renda e riqueza acentuou-se no mesmo período. Isso parece indicar que os mecanismos de mercado podem promover um crescimento econômico, porém ao custo do aumento das desigualdades de renda e riqueza entre as pessoas da mesma nação ou mesmo numa escala interpessoal mundial.

Aumento da renda dos mais pobres, porém em menor proporção que a renda dos mais ricos, ampliando a desigualdade, é uma característica do capitalismo reconhecida por Adam Smith já na introdução de A Riqueza das Nações. John Stuart Mill denunciou a extrema desigualdade da economia capitalista inglesa no século 19, preconizando reformas institucionais redistributivas. Atualmente, a sabedoria econômica convencional tende a aceitar e endossar esse tipo de resultado distributivo promovido pelo mercado, sob o mesmo argumento de Smith, de que a riqueza em crescimento acaba atingindo também os mais pobres, que melhoram suas condições materiais (efeito trickle down). Argumenta-se também que a distribuição promovida pelo mercado tende a ser justa, por premiar cada indivíduo segundo sua contribuição produtiva pessoal ou dos recursos que possui. Contudo, os dados da Oxfam indicam que o efeito trickle down tem sido praticamente nulo nos últimos 15 anos, enquanto a desigualdade de renda e riqueza alcança níveis extremos, que não podem ser explicados pela contribuição produtiva de indivíduos e seus recursos. Assim, a situação recente assemelha-se mais ao prognóstico de outro pensador do capitalismo, Karl Marx.

Marx indicou que o capitalismo desenvolve-se espontaneamente segundo uma "lei geral da acumulação", que promove a acumulação de riqueza num polo da sociedade e de miséria no polo oposto. De um lado, os empreendimentos capitalistas, propriedade de um reduzido número de pessoas, tendem a se tornar cada vez maiores (concentração e centralização do capital), movidos pela competição em busca de uma valorização incessante. De outro lado, uma massa crescente de trabalhadores despossuídos tem rendimentos estagnados e padece de precárias condições de trabalho e existência, sucumbindo na miséria econômica e moral. Essas condições, combinadas com as crises periódicas inerentes ao capitalismo, levariam a alguma forma de colapso do sistema, induzindo a reação social para a sua superação. Entretanto, nas nações de capitalismo avançado, uma menor expansão demográfica da classe trabalhadora, sua organização sindical e as lutas sociais transformaram o Estado e estabeleceram novas instituições capazes de regular condições de trabalho e distribuição da renda de modo mais favorável aos que vivem apenas de sua capacidade de trabalho. Onde essas lutas e mudanças institucionais não ocorreram, a tendência de concentração econômica e geração de desigualdades de renda e riqueza manifestou-se de forma inequívoca. Nas condições atuais da economia mundial, as ideias de Marx ganham relevância, pois a atual fase do capitalismo caracteriza-se pela desregulação da economia, por meio da liberalização dos mercados de produtos, de capital e de trabalho.

No capitalismo globalizado e desregulado dos dias atuais, a desigualdade de renda e riqueza está crescendo por várias causas. A principal delas refere-se a uma remuneração do capital (lucros, juros e rendas de propriedade) superior às taxas de crescimento do conjunto da economia. Também contribuem para o fenômeno as desigualdades salariais extremas e o sistema fiscal baseado crescentemente em impostos indiretos e nas isenções para os ricos e grandes corporações, que também se valem de paraísos fiscais. Isso provoca escassez de recursos para as políticas de bem-estar social nos países ricos e pobres, restringindo os serviços básicos de educação e saúde para os cidadãos comuns.

Além disso, conforme alerta a Oxfam, a elevada desigualdade de riqueza e renda está associada à desigualdade de gênero, implicando que as mulheres recebem menores salários e tem menos acesso à educação e aos postos de representação política. A desigualdade nos padrões de vida entre ricos e pobres também traduz-se em impactos ambientais muito desiguais. Enquanto a metade mais pobre da população mundial - a parcela que mais padece com o aquecimento global - é responsável por cerca de 10% das emissões de gases, o 1% mais rico é responsável por 175 vezes mais emissões que os 10% mais pobres. O poder econômico que resulta da elevada concentração de renda e riqueza tem sido utilizado para moldar as instituições econômicas em favor dos ricos, gerando o que a Oxfam considera uma "crise de desigualdade fora de controle".

As consequências dessa crescente desigualdade manifestam-se na perda de coesão social, na segregação e no ódio de classe, no descolamento das elites nacionais em relação às necessidades das pessoas comuns, nas rivalidades nacionais e étnicas e na exacerbação da competição econômica e social. A longo prazo esse processo não pode levar a outro resultado que não a falência do sistema político, especialmente em suas formas democráticas, o que tende a solapar as possibilidades de manter o crescimento econômico e de realizá-lo de forma ambientalmente sustentável, prenunciando algum tipo de barbárie. A atual mercantilização dos recursos naturais, num contexto de crescente degradação ambiental, aponta um futuro em que somente os mais ricos poderão usufruir tanto dos benefícios da economia capitalista quanto das condições ecológicas essenciais à vida humana. Tal quadro somente poderá ser revertido mediante alguma reação da sociedade que transforme as relações de poder e as instituições socioeconômicas legadas pelo capitalismo. Isso requer compreensão da dinâmica da sociedade capitalista mundial e um debate público qualificado capaz de superar a presente hegemonia da ideologia individualista do livre mer

Fonte:GaúchaZH 




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