LE MONDE DIPLOMATIQUE! CAMPOS DE VENENO: A Vida em campos amazônicos cercados pela soja

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Reportagem acompanhou os impactos 
da monocultura no meio ambiente e 
na vida dos habitantes da região do 
Planalto Santareno, no Baixo Rio 
Tapajós. “A maioria da população é 
afetada negativamente: aumenta a 
pobreza, aumenta a miséria, aumenta a
 fome, a insegurança pública, a 
violência. Concentra renda, concentra 
terra e aumentam os impactos negativos
 na área social”

Nos inícios dos anos 2000 o terreno ao lado da casa de Seu Macaxeira foi comprado por um sulista recém chegado. De início, Seu Macaxeira ficou feliz com a chegada do novo vizinho. Era simpático e dizia que vinha trabalhar a terra. Ao se apresentar, falou que queria mesmo vir para um lugar tranquilo, que lá no Sul tinha tido muito atrito com os vizinhos. Deu a impressão de que veio para se estabelecer. Seu Macaxeira havia se mudado em meados de 1999 para a comunidade de Santos da Boa Fé, próximo à Rodovia Curuá-Una, em Santarém (Oeste do Pará). Estava contente com a sua produção. Ali plantava mamão, cupuaçu, graviola, batata, maracujá e macaxeira – tanta que lhe rendeu o apelido que leva até hoje, aos 64 anos. Todos chamam Antônio Alves assim: Seu Macaxeira. Com seu plantio, sustentava quatro filhos. Sem veneno. Naquele momento, virada do milênio, a soja sequer figurava em seu horizonte.
“Foi um vizinho muito bom, só que aí ele começou a comprar terras”, relembra Macaxeira. Primeiro ele comprou uma terra dos fundos. Depois comprou a da direita. Já em 2002, começou a derrubar o mato que havia ao redor. Ele prometia àqueles de quem comprava terrenos que geraria emprego na região. Pouco a pouco, Macaxeira se viu cercado. A tranquilidade prometida não vingou. Os empregos, tampouco. Quando muito na fase de derrubada da mata. Nessa época, era o barulho que mais transtornos trazia. Em seguida, a soja. “Aí comecei a passar muito atrito”, relembra.




Agricultor familiar tem sua pequena roça cercada pela soja e pelo veneno.
O agricultor Antonio Alves, conhecido como Seu Macaxeira trabalha em sua área de roça que esta cercada por plantação de soja, na comunidade Santos de Boa Fé, Santarém PA. Foto: Bruno Kelly.

Seu Macaxeira observava a reação da aplicação do veneno em seus filhos, “irritava os olhos, irritava a garganta. Era febre diária, era dor na cabeça”. O uso de agrotóxicos pelo vizinho começou a dificultar sua própria atividade profissional. “Eu que vivia da agricultura familiar, mais da colheita do mamão, da macaxeira, começou a não dar mais. O veneno não deixou.” As plantas passaram a não dar frutos. Ou quando davam, já não eram frutos tão saudáveis como antes. As folhas murchavam antes de florescer. A saúde e o sustento de sua família estavam ameaçados.


Uma tarde de 2007, no início do verão amazônico, Macaxeira viu mais uma vez o vizinho iniciando a aplicação do veneno. Eram seis horas da tarde e as crianças estavam em casa. Preocupado, foi conversar sobre a situação com ele:
– Eu embarguei. Disse que ele não colocasse mais veneno, senão eu ia dar parte dele – relembra o agricultor.
Alguns dias depois, o vizinho veio lhe fazer uma visita, também no fim da tarde. Pediu licença, e disse:
– Seu Antônio, hoje eu vim para fazer dois negócios: ou o senhor compra a minha área ou eu compro a sua.

Sitiado por um terreno maior que o seu, ambientalmente degradado pela derrubada da floresta e acúmulo de veneno, e com suas economias debilitadas pela atividade do vizinho, Macaxeira não tinha como comprar a área. “Nós não tivemos mais como ficar no terreno na época que eu morava. Ninguém mais conseguiu sobreviver respirando soja, com aquele veneno. E eu fui obrigado a vender.”
Macaxeira se mudou para outro local da mesma Santos da Boa Fé, o ramal do Jacaré, onde fizemos esta entrevista. A partir de 2005 a soja tomou conta da comunidade e de outras tantas na região conhecida como Planalto Santareno, composta pelos municípios de Santarém, Belterra e Mojuí dos Campos. “O veneno obriga a pessoa a entregar o seu lote. Não é mais o preço”, resume.
Comunidade de Boa Esperança
“Há anos as araras e os macacos vinham aqui comer as frutinhas das árvores. Vinham na porta de casa. De repente, desapareceram”, comenta, com carinho, Sônia Maria Guimarães Sena da Comunidade de Boa Esperança. Vive junto com seu pai, Raimundo Alves Guimarães, o Seu Curica. O quintal das duas casas termina onde se inicia o campo de monocultura. Ambos estão cercados. A diferença entre os terrenos salta aos olhos: do lado de cá da cerca, nos arredores da casa, uma proliferação de espécies, como bananeiras, cajueiros, limoeiros, macaxeiras e outras tantas árvores frutíferas. Do outro lado, soja, milho e glifosato – o veneno utilizado para conter pragas.

– Algumas pessoas que tentaram resistir não conseguiram. Eles [os sojeiros] foram comprando aqui e ali, e aqueles que ficaram no meio foram obrigados a vender, porque não tem condições. O veneno mata tudo, leva tudo, o veneno sai fora pros sítio tudo. Por isso venderam tudo. Não tinham mais condições de plantar – relata seu Curica.
Ele mostra um cajueiro em seu quintal. “Dão tudo sementes. Floresce, mas não nasce”. Com o avançar da idade, ele deixou de trabalhar na roça. O terreno em que trabalhava ficava próximo à Hidrelétrica de Curuá-Una. Hoje, aposentado, passa o dia tecendo malhadeiras para pesca. O trabalho é demorado, e cada rede é vendida por R$ 600.
Sua esposa faleceu em maio de 2019, alguns meses antes de nossa visita, em decorrência de um câncer de estômago. Maria Dercy Godinho é relembrada por sua família como uma lutadora. Pai e filha se emocionam ao falar dela. “Minha esposa, enquanto viva, lutou muito, para que não houvesse esse exagero de agrotóxico aqui. Mas não conseguiu.” Caminhamos pelo cemitério onde está enterrada, a poucos metros da casa onde vivia. O próprio cemitério encontra-se cercado pela vastidão plana e monocromática dos campos de grãos.




Plantações de soja cercam floresta amazônica em Santarém (PA)
Vista aérea de plantações de soja próximo a cidade de Belterra PA. Foto: Bruno Kelly.

– Ela ficava agoniada com o cheiro forte que vinha. Sentia uma falta de ar, ficava sem poder respirar muito. Se trancava aí dentro. Deixava passar um pouco, para deixar sair. O problema dela era a falta de ar. Reclamava, vinha com o povo aí. Ver se eles não vendiam a terra. Trazer a gente do sindicato pra fazer palestra. Mas venderam mesmo. Não teve jeito. O dinheiro falou mais alto – reflete Curica, com o olhar perdido em algum lugar incerto.

Maria Dercy Godinho pertencia ao Sindicato dos Trabalhadores Rurais de Santarém, assim como Seu Macaxeira. Representando os pequenos trabalhadores rurais da região, o sindicato atua na linha de frente do embate contra os impactos da soja na região.
Um dos vizinhos de Curica se recusou a conceder uma entrevista. “Eu não quero confusão, como que vou falar mal do sojeiro se eles alugam minha terra? Consigo até um pouco de glifosato”, disse. Gaúcho, alto, de olhos claros, passou a fazer contas sobre a dificuldade de dar continuidade aos negócios a que antes se dedicava, na produção farinha. Queria demonstrar, matematicamente, que o mais lucrativo e lógico para o pequeno proprietário rural é alugar sua terra para os sojeiros. A saca de farinha de mandioca, segundo ele, chega a ser vendida por R$ 80 reais no Mercado de Santarém. Com R$20 de frete que precisa pagar para percorrer os mais de 40 km que separam Boa Esperança do centro da cidade, “não dá para nada”, em suas próprias palavras. Em compensação, alugando o terreno para produção de soja, obtém um rendimento fixo, independente da produtividade. “Se tivesse cem hectares”, refletia em voz alta, enquanto fazia contas, “arrendava 70 para a produção de soja e vivia de renda.”

Com Seu Macaxeira, percorremos o Ramal da Moça, onde existia uma comunidade com o mesmo nome. “Desde 2005 que a porrada vem correndo solta em cima dos moradores”, contou, enquanto nos aproximávamos do local. Ele ansiava em nos mostrar resquícios da comunidade, casas abandonadas de moradores que tudo venderam para ir para a cidade. Para a sua surpresa, até as casas foram derrubadas. Ali, antes, viviam 75 famílias. Agora, só soja. Pudemos observar apenas um colégio e duas casas, já tomados pela vegetação rasteira, que subia pelas paredes e começava a embrulhar as construções, como um manto verde. Logo, elas também serão derrubadas.
A soja promove uma mudança nas relações entre pessoas e a terra em que vivem. Impõe uma espécie de separação e de afastamento, que implica em abandono das comunidades e ida para cidade. A monocultura de grãos parece não deixar brechas. Alterou definitivamente a paisagem, a vida e as relações sociais no Planalto Santareno.
Seu Curica lamenta: “aqui não tem esperança de ter um progresso melhor, porque aqui parou tudo. Não tem como aumentar, progredir”. Aquilo que os sojeiros chamam de desenvolvimento, para pequenos agricultores se apresenta como ruína. Existe uma sensação geral de desânimo e resignação no ar, que contrasta com o nome da comunidade: Boa Esperança. Localidade para onde muitos vieram quando se começou a abrir a mata, nos primeiros anos da década de 1930. Ali imaginava-se um futuro promissor, com a extração de pau rosa, para produção de perfume. Poucos anos depois, o nome parecia ter alguma aderência ao que se vivia. A comunidade se tornou um importante polo produtor de farinha para Santarém. “Tinha emprego demais aqui. Você não ia lá procurar serviço, eles que vinham atrás de você”, alude Curica, referindo-se a um passado distante, em nada presente na comunidade hoje. “Aí com a chegada da soja, o pessoal foi vendendo as terras, e foi acabando o emprego”.
Lago do Maíca
Ciro de Souza Brito é advogado e trabalha na Terra de Direitos, ONG que presta assessoria jurídica para comunidades rurais e quilombolas afetados pela soja na região do Planalto Santareno. “A soja não vem sozinha, como commodity. Ela traz diversos problemas. Ela vai desterritorializar, adoecer, criminalizar, ela vai marginalizar”.

O advogado articula rapidamente suas ideias, encadeado-as com clareza e explicitando a gravidade da situação vivida na região. Ele analisa a expansão da cadeia da soja na região a partir dos impactos em quem vive próximo à terra:
– Ao passo que a soja expande, ela desterritorializa as comunidades e aumenta a necessidade de escoar a soja que se está plantando. E por onde vai sair? Aqui entra a questão do Lago do Maicá. As comunidades entendem que é um criadouro de peixes, inclusive nas palavras do Dileudo, e os estudos apontam que é um santuário de peixes, no sentido de haver mais de dezoito espécies. É um lugar onde as aves vêm se alimentar dos peixes. Tem uma riqueza de biodiversidade muito grande no lago e no seu entorno.
Presidente da associação de moradores do Quilombo do Bom Jardim, Dileudo Guimarães dos Santos conhece como poucos a realidade do Lago do Maicá. Ele vive tanto os impactos da expansão da plantação de soja como da construção da infraestrutura que a exportação do grão demanda. Encontramos com ele no quilombo em plena celebração do Dia da Consciência Negra, e voltamos para a entrevista 48 horas depois. O quilombo ainda estava em clima de festa, ou melhor, de fim de festa, com as pessoas arrumando as áreas comuns e voltando à suas atividades diárias.
O Quilombo do Bom Jardim fica em um local de difícil acesso, entre o Lago do Maicá e o pé de uma serra. Para chegar até ele, vindo da rodovia Curuá-Una, é preciso embrenhar-se em ramais tomados pela soja, passar ao lado do terreno de Seu Macaxeira e descer um baixada íngreme e escorregadia. Para Dileudo, a localização do quilombo é estratégica:
– Que o povo que vinha pra cá, que vieram pra cá como escravos, se localizavam nas áreas aqui debaixo, mas tinha gente que ficava, durante o dia, na área da serra. E alguns trabalhavam também lá. Porque facilitava ter uma visão de quem chegava pela água. Então já avisava as pessoas: ‘olha, tá chegando, tal e ali’”.




Comunidade cercada por campos de soja em plena Amazônia
Dileudo Guimaraes dos Santos, Presidente da Associação de Moradores do Quilombo Bom Jardim caminha na comunidade que está cercada por campos de soja. Foto: Bruno Kelly.

No interior do Pará a história se repete de modo curioso. Ela parece inverter a célebre frase usada por historiadores. Em terras tapajônicas, a história surge primeiro como farsa, e só depois como tragédia. Justamente por conta dessa geografia estratégica, que uma vez favoreceu aqueles que fugiam da escravidão, hoje o quilombo recebe água com veneno das plantações de soja que ficam no topo da serra. Um lixão da cidade de Santarém, instaurado na parte mais alta, também traz água contaminada para eles. Apesar do avançado processo de titulação do Quilombo, grileiros avançam sobre a área dos comunitários, plantando soja, dentro do território, enquanto os quilombolas mesmo “poucos têm terra para trabalhar”, lamenta Dileudo.

Além da qualidade da água, outra de suas preocupações é com o peixe. “Aqui é água do Tapajós, a água do Amazonas é mais branquicenta. A gente percebe que essa água tem mudado um pouco de cor. E já foram encontrados peixes mortos. Achamos que é pela contaminação da água. E a gente sabe que a contaminação da água vai diminuir a quantidade de peixes."...

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