O pequeno município sobreviveu durante anos dos peregrinos que vinham se consultar com o famoso médium e curandeiro, acusado de abusar sexualmente de mulheres que procuravam tratamento espiritual
se um famoso centro de peregrinação desde que o curandeiro e médium espiritual João Teixeira de Faria, conhecido popularmente como João de Deus, se estabeleceu ali em meados dos anos 70. E, na última semana, perdeu o selo de pacata, ao se ver envolvida no centro de um escândalo de enorme magnitude. João Deus é alvo de mais de 500 denúncias —até o momento— de ter se aproveitado sexualmente de mulheres durante as sessões espirituais conduzidas por ele.
Naquele canto do Brasil o médium é, para muitos, um verdadeiro enviado divino. É sem dúvidas o curandeiro mais famoso de um país de forte tradição espírita e de sincretismo religioso. A casa Dom Inácio de Loyola, o rancho onde ele recebe seus seguidores, leva o nome do espanhol fundador da ordem dos jesuítas no século XVI. Loyola é também o religioso cujo espírito João de Deus afirma receber. É por meio dele e de outras entidades que o médium se diz capaz de curar doenças, incluindo casos de câncer. Nessa narrativa, são os espíritos incorporados que passam a ele o conhecimento para realizar as terapias espirituais. Os procedimentos envolvem até cortes com bisturis, feitos às vezes com os olhos fechados e sem qualquer luva ou equipamento de esterilização, uma das razões pelas quais seus métodos sempre foram questionados pela comunidade médica do país.
Sua fama ultrapassou as fronteiras do país e o médium passou a reunir seguidores inclusive fora do Brasil, que viajam milhares de quilômetros para se consultar com ele. Para muitos, as ações resultavam em verdadeiros milagres, o que chamou a atenção até da apresentadora de TV norte-americana Oprah Winfrey, que o visitou em 2012 para uma série de reportagens. "Estou maravilhada", afirmou ela, na época.
Mas o império religioso de João de Deus começou a desmoronar na sexta-feira, 7 de dezembro, quando o programa Conversa com Bial, da rede Globo, divulgou a história de dez mulheres que afirmaram ter sido abusadas sexualmente pelo médium enquanto se submetiam aos tratamentos espirituais. Outras três também fizeram afirmações semelhantes ao jornal O Globo. Os depoimentos diziam que o curandeiro abordava algumas mulheres que buscavam sua ajuda durante os atendimentos públicos e afirmava que, como parte do processo de cura, elas precisavam passar por uma consulta particular. Uma vez longe dos olhos dos demais frequentadores da casa Dom Inácio, eram abusadas. "Ele pegava na minha mão para eu pegar no pênis dele. E eu tirava a mão", contou a coreógrafa holandesa Zahira Leeneke Maus. "[Ele dizia] põe a mão, isso é limpeza. Você precisa da minha energia, que só vem dessa maneira, para eu poder fazer a limpeza", continuou ela.
As acusações levaram a Polícia de Goiás e o Ministério Público local a abrir investigações contra o médium. Desde então, o caso não parou de crescer. As autoridades começaram a recolher depoimentos de outras mulheres que relataram práticas semelhantes: durante estas audiências privadas, João de Deus lhes pedia que tocassem seus órgãos genitais ou passava a mão no corpo delas. Segundo a polícia e os promotores, existem dezenas de possíveis vítimas que já se apresentaram e contaram histórias com o mesmo padrão, mas o primeiro inquérito aberto contra ele trata apenas do relato de uma mulher. Isso acontece porque até recentemente a lei brasileira não permitia investigar denúncias de crimes sexuais cometidos depois que os acontecimentos tivessem completado seis meses. João de Deus, que foi preso preventivamente no domingo, nega ter cometido qualquer tipo de abuso.
ordem depositado no banco. Também foi revelado que João de Deus é dono de fazendas, de outros imóveis na região e de um avião. Além disso, em uma busca realizada em uma de suas residências em Abadiânia, na terça-feira, a polícia encontrou 400.000 reais em dinheiro e cinco pistolas. E, nesta sexta, em uma nova busca nas residências dele, investigadores apreenderam mais dinheiro e pedras preciosas.
Mito questionado
Nos arredores da casa Dom Inácio, a reação às revelações é, para muitos, de incredulidade. Especialmente para aqueles que se tornaram seus seguidores e afirmam ter sido curados de doenças pelo médium.
René Everton, uma sul-africana em sua terceira visita a Abadiânia, diz que acha “muito difícil dar uma opinião negativa” sobre a situação. “Acho que temos de separar o João de Deus como pessoa e o João de Deus quando está incorporando um espírito”, diz. “É muito triste para todos nós. É muito difícil para mim dar uma opinião sobre a pessoa que ele é. Se você ama uma pessoa, se você a respeita e admira, é muito difícil dar uma opinião negativa”, afirma. A ucraniana radicada nos Estados Unidos Elena Kokovska, por sua vez, diz que sente compaixão pelas mulheres que relataram ter sido vítimas do curandeiro, mas pede que João de Deus seja perdoado. “Eu ouvi muitos casos de pessoas que foram curadas por ele. Este homem trouxe muitas bênçãos ao mundo”, justifica.
Entre as pessoas que vivem em Abadiânia também há os que defendem o curandeiro espiritual, mas surgem também habitantes que o acusam de ser um vigarista que se beneficiava da fé dos forasteiros. Qualquer que seja a opinião sobre o homem, há uma preocupação comum que ronda a todos: o que acontecerá agora com a cidade, que ao longo de décadas se movimentou ao redor dos peregrinos de João de Deus? Nas lojas de produtos esotéricos, nos restaurantes e hotéis, todos demonstram apreensão com a redução do número de peregrinos e os empregos que serão perdidos com isso. “Tudo nesta cidade dependia da Casa Dom Inácio”, lamenta um morador.
A casa Dom Inácio, um amplo rancho a apenas alguns metros da rodovia que atravessa o município, ainda está aberta e algumas pessoas, principalmente estrangeiros, continuam frequentando-a para meditar e se consultar com os assistentes do médium. Mas sem João de Deus todos sabem que o futuro não será o mesmo. “O golpe em Abadiânia é muito forte. Muito forte e veio de repente, ninguém esperava por isso. Agora temos que pedir forças a Deus e lutar para superar isso”, lamenta José Diniz, o prefeito da cidade.
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