"Pão e Circo": Carnaval x Moralidade Administrativa.
Por Flávia Valéria Silva
Panem et circenses, expressão latina mais conhecida como “Pão e Circo”, foi o termo criado pelos críticos de diversos imperadores romanos que faziam políticas de distribuição gratuita de trigo e espetáculos no coliseu romano, objetivando contentar e distrair a população civil romana dos diversos problemas que assolavam o império, evitando assim que este se rebelasse contra o imperador.
No Brasil, o futebol, carnaval e festas patrocinadas pelos Municípios assumiram esse papel no cenário nacional. Nada contra a prática esportiva, que bem orientada pode sim ajudar adolescentes e jovens até mesmo a não ingressar no mundo das drogas. Muito menos os festejos de momo, ou as festas em comemoração a datas típicas, como São João no nordeste, são, por si, negativos.
O que causa perplexidade é o empenho e entusiasmo nesses eventos, expresso nos rostos felizes dos torcedores e brincantes, enquanto os problemas enfrentados pelo sistema de saúde, a situação da educação pública, o piso salarial baixo dos professores, a violência urbana, a falta de saneamento, fome e miséria de grande parte da população brasileira, a falência de políticas públicas que consigam em sua totalidade abarcar a coletividade, padece de torcedores e brincantes.
Os recursos públicos que são usados pelos governantes (Presidente da República, Governadores e Prefeitos) não são ilimitados, e devem atender primeiramente a necessidades básicas da coletividade, sendo direito da comunidade, saber quanto vai custar determinado ou festejo equal impacto terá que suportar com este gasto.
Na tentativa de estabelecer uma nova consciência coletiva nos gastos públicos, a representação assinada pelo MPMA e MPCONTAS ao Tribunal de Contas do Estado do Maranhão (TCE/MA), em fevereiro de 2018 resultou na aprovação da Instrução Normativa no 54/2018 pelo Tribunal de Contas, passando a ser considerados como não justificáveis os gastos públicos realizados com festejos no Município, quando houver sido declarada situação de emergência e calamidade municipal, e também no caso de atrasos do pagamento de servidores e serviços públicos.
Um passo importante na moralização dos gastos públicos, posto que inaceitável que o MUNICÍPIO assuma despesas com festas, quando o salário dos servidores apresentarem atraso, o que por si, já demonstra irregularidade na administração do dinheiro público.
O Carnaval, em particular, a experiência tem demonstrado que os gastos do dinheiro público para pagar a festa, servem, muitas vezes, para a promoção pessoal do gestor, que objetiva ou sua própria reeleição ou mostrar apoio a um candidato, o que se verifica por meio de fotos, pela presença das figuras políticas ao evento, já servindo de propaganda antecipada para o lançamento de candidaturas, que embalada pelo “pão e vinho” passam a compor o imaginário popular.
Não se pode alegar desconhecimento de que a base política dos deputados federais, estaduais e senadores é formada no interior dos Estados. O modo de fazer política está diretamente ligado à execução dos gastos públicos.
Talvez por essa razão, segundo informações do sítio eletrônico da Assembléia Legislativa do Estado do Maranhão (ALEMA), no dia 08/02/18, uma comitiva de Prefeitos, representados por sua federação, reuniu-se com o Presidente da ALEMA para discutir justamente os termos da Instrução Normativa no 51/2018 do TCE/MA, objetivando a tentativa de obstar o poder normativo do Tribunal de Contas, que é previsto na própria Constituição Federal.
O art. 71 da Constituição Federal, em linhas gerais, estabelece que o controle externo do executivo está a cargo do legislativo com o auxílio dos Tribunais de Contas, a quem compete aplicar em caso de ilegalidade de despesa ou irregularidade de contas, as sanções previstas em lei, bem como assinar prazo para que o órgão ou entidade adote as providências necessárias ao exato cumprimento da lei, se verificada ilegalidade; além de poder suspender a execução do ato impugnado, comunicando a decisão ao poder legislativo.
Na organização dos Tribunais Estaduais, a Constituição Estadual deverá observar essas normas expressas na Carta Maior, conservando os princípios fundamentais que estruturam a função do tribunal de contas, consoante disposição do art. 75 da Constituição Federal, segundo o qual compete aos Tribunais a fiscalização dos gastos públicos, para que os gestores possam ser orientados de como realizar a despesa pública, podendo, inclusive, sustar o ato do gestor reputado ilegal, imputando débito e multa.
Tanto é assim, que a Lei Complementar no 101/2000 (Lei de Responsabilidade Fiscal), em seu art. 59, §2o, V estabelece a competência do Tribunal de Contas para emitir alerta preventivo de responsabilidade fiscal objetivando prevenir a realização de atos que comprometam a efetivação de programas ou indícios de irregularidades com o gasto público.
Assim, toda a proposta de alteração da Constituição do Estado deverá atender aos princípios e normas sensíveis previstos na Constituição Federal, que em momento algum previu que as normas e alertas preventivos dos Tribunais de Contas deveriam estar submetidos à audiência prévia dos gestores públicos, para que se manifestem se concordam ou não com a medida.
A proposta da PEC, como noticiada nos meios de comunicação virtual, encontra óbices na Constituição Federal, uma vez que seria mais ou menos como estabelecer uma lei na qual o juiz de direito devesse perguntar ao acusado se concorda ou não em cumprir a lei, ou em cumprir eventual pena ou sanção que lhe foi imposta. Não é necessário um exercício profundo de futurologia para se prever o caos social que se instalaria, submeter uma decisão ao controle de quem deve cumprir esta decisão.
No mesmo sentido, não é razoável expectar que o Prefeito tenha que ser ouvido se concorda ou não com eventual limitação as formas de realizar o gasto do dinheiro público.
Assim, qualquer proposta de emenda a Constituição Estadual, que objetive limitar o poder regulatório dos Tribunais de Contas, falece de inconstitucionalidade, por violação de princípios sensíveis, que resultariam em mudança, não autorizada, do formato conferido pelo legislador constituinte originário aos Tribunais de Contas.
Portanto a Instrução Normativa no 51/2018 do TCE/MA é constitucional, sendo inconsistentes os seus ataques.
Por um lado, a defesa da probidade e da moralidade alcançou um novo patamar, ao evoluir para o combate de gastos públicos com festejos quando constatada a precariedade da oferta de serviços públicos; por outro, compete à sociedade conhecer as atividades de seus parlamentares e nas eleições renovar ou retirar o mandato daqueles que não agem segundo os anseios sociais e comprometimento com as causas que resultem em melhorias para todos.
FLÁVIA VALÉRIA NAVA SILVA, é Promotora de Justiça titular da 1a Promotoria de Itapecuru-Mirim/MA, Especialista em direitos coletivos, difusos e gestão fiscal pela ESMP/MA, Idealizadora e Coordenadora do Projeto Combate a Corrupção: Capacitando o Cidadão (certificado pela ENCCLA)
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